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Importantes pais da Igreja falam sobre o livre-arbítrio



Com exceção dos escritos dos últimos anos de Agostinho, que após sua experiência na controvérsia donatista (v. ap. 3) concluiu que as pessoas podiam ser forçadas a crer, quase todos os grandes pensadores até a Reforma afirmaram que o ser humano tem o direito de escolher o contrário, mesmo no estado caído.[1] Ninguém cria que um ato coagido é um ato livre. Em resumo, todos teriam rejeitado o pensamento do calvinismo extremado de que Deus age irresistivelmente sobre quem não quer (v. cap. 5)

JUSTINO MÁRTIR (100-165 D.C.)

Deus, no desejo de que homens e anjos seguissem sua vontade, resolveu criá-los livres para praticar a retidão. Se a Palavra de Deus prediz que alguns anjos e homens certamente serão punidos, isso é porque ela sabia de antemão que eles seriam imutavelmente ímpios, mas não porque Deus os criou assim. De forma que quem quiser, arrependendo-se, pode obter misericórdia (Dialogue, CXLI).

IRENEU (130-200 D .C.)[2]

A expressão: “Quantas vezes eu quis reunir os seus filhos [...] mas vocês não quiseram” ilustra bem a antiga lei da liberdade do homem, porque Deus o fez livre desde o início, com vontade e alma para consentir nos desejos de Deus sem ser coagido por ele. Deus não faz violência, e o bom conselho o assiste sempre, por isso dá o bom conselho a todos, mas também dá ao homem o poder de escolha, como o tinha dado aos anjos, que são seres racionais, para que os que obedecem recebam justamente o bem, dado por Deus e guardado para eles. [...]

Se não dependesse de nós o fazer e o não fazer, por qual motivo o Apóstolo, e bem antes dele o Senhor, nos aconselhariam a fazer coisas e a nos abster de outras? Sendo, porém, o homem livre na sua vontade, desde o princípio, e livre é Deus, à semelhança do qual foi feito, foi-lhe dado, desde sempre, o conselho de se ater ao bem, o que se realiza pela obediência a Deus (Contra as heresias, IV, 37.1,4)

ATENÁGORAS DE ATENAS (SÉC. II)

Justamente como homens que possuem liberdade de escolha assim como virtude e defeito (porque você não honraria tanto o bom quanto puniria o mau, a menos que o defeito e a virtude estivessem em seu próprio poder, e alguns são diligentes nos assuntos confiados a eles, e outros são infiéis), assim são os anjos (Embassy for Christians, XXIV).

TEÓFILO DE ANTIOQUIA (SÉC. II)

Deus fez o homem livre, e esse poder sobre si próprio [...] Deus lhe concede como um dom por filantropia e compaixão, quando o homem lhe obedece. Pois como o homem, desobedecendo, atraiu morte sobre si próprio, assim, obedecendo à vontade de Deus, aquele que deseja é capaz de obter para si mesmo a vida eterna (Para Autolycus, XXVII).

TACIANO DA SÍRIA (FIM DO SÉC. II)

Viva para Deus e, apreendendo-o, coloque de lado sua velha natureza. Não fomos criados para morrer, mas morremos por nossa própria falha. Nosso livre-arbítrio nos destruiu, nós que fomos livres nos tornamos escravos; fomos vendidos pelo pecado. Nada de mal foi criado por Deus; nós próprios manifestamos impiedade; mas nós, que a temos manifestado, somos capazes de rejeitá-la novamente (Address, XI).

BARDESANO DA SÍRIA (C. 154-222)

Como é que Deus não nos fez de modo que não pecássemos e não incorrêssemos na condenação? Se o ser humano fosse feito assim, não teria pertencido a si mesmo, mas seria instrumento daquele que o moveu. [...] E como, nesse caso, diferiria de uma harpa, sobre a qual outro toca; ou de um navio, que outra pessoa dirige: onde o louvor e a culpa residem na mão do músico ou do piloto, [...] eles sendo somente instrumentos feitos para uso daquele em quem está a habilidade? Mas Deus, em sua benignidade, escolheu fazer assim o ser humano; pela liberdade ele o exaltou acima de muitas de suas criaturas (Fragmentos).

CLEMENTE DE ALEXANDRIA (C. 150-215)

Mas nós, que temos ouvido pelas Escrituras que a escolha auto-determinadora e a recusa foram dadas pelo Senhor ao ser humano, descansamos no critério infalível da fé, manifestando um espírito desejoso, visto que escolhemos a vida e cremos em Deus através de sua voz (Stromata, 2.4).

Mas nada existe sem a vontade do Senhor do universo. Resta dizer que essas coisas acontecem sem o impedimento do Senhor. Não devemos, portanto, pensar que ele ativamente produz aflições (longe esteja de nós pensar uma coisa dessas!); mas devemos ser persuadidos de que ele não impede os que as causam, mas anula para o bem os crimes dos seus inimigos (Stromata, 4.12).

TERTULIANO (155-225)

Eu acho, então, que o ser humano foi feito livre por Deus, senhor de sua própria vontade e poder, indicando a presença da imagem de Deus e a semelhança com ele por nada melhor do que por esta constituição de sua natureza. [...]

Você verá que, quando ele coloca diante do ser humano o bem e o mal, a vida e a morte, que o curso total da disciplina está disposto em preceitos pelos quais Deus chama o ser humano do pecado, ameaça e exorta-o; e isso em nenhuma outra base pela qual o ser humano é livre, com vontade ou para a obediência ou para a resistência.[...]

Portanto, tanto a bondade quanto o propósito de Deus são descobertos o dom da liberdade em sua vontade dado ao ser humano... (Contra Marcião, 2.5).

NOVACIANO DE ROMA (C. 200-258)

Ele também colocou o ser humano no topo do mundo, e também o fez à imagem de Deus, e lhe comunicou mente, razão e perspicácia, para que pudesse imitar a Deus; e, embora os primeiros elementos do seu corpo fossem terrenos, a substância foi inspirada por um sopro divino e celestial. E, quando ele lhe deu todas as coisas para o seu serviço, quis que apenas ele fosse livre. E, para que novamente uma ilimitada liberdade não caísse em perigo, estabeleceu uma ordem, na qual ao ser humano foi ensinado que não havia qualquer mal no fruto da árvore; mas ele foi advertido previamente de que o mal surgiria se porventura ele exercesse o seu livre-arbítrio no desprezo à lei que lhe foi dada (Sobre a Trindade, cap. 1).

ORÍGENES (C. 185-254)

Ora, deve ser conhecido que os santos apóstolos, na pregação da fé de Cristo, pronunciaram-se com a maior clareza sobre certos pontos que eles criam ser necessários para todo mundo. [...] Isso também é claramente definido no ensino da Igreja de que cada alma racional é dotada de livre-arbítrio e volição (De Principiis, pref.).

Há, de fato, inúmeras passagens nas Escrituras que estabelecem com extrema clareza a existência da liberdade da vontade (De Principiis, 3.1).

METÓDIO (C. 260-311)

Ora, aqueles que decidem que o ser humano não possui livre-arbítrio, e afirmam que ele é governado pelas necessidades inevitáveis do destino [...] são culpados de impiedade para com o próprio Deus, fazendo-o ser a causa e o autor dos males humanos (O banquete das dez virgens, xvi).

Eu digo que o ser humano foi feito com livre-arbítrio, não como se já houvesse algum mal existente, que ele tinha o poder de escolher se quisesse [...], mas que o poder de obedecer e desobedecer a Deus é a única causa (Sobre o livre-arbítrio).

ARQUELAU (C. 277)

Todas as criaturas que Deus fez, ele fez muito boas, e deu a cada indivíduo o senso de livre-arbítrio, de acordo com o padrão que ele também instituiu na lei de julgamento. Pecar é característica nossa, e nosso pecado não é dom de Deus, já que nossa vontade é constituída de modo a escolher tanto pecar quanto não pecar (Discussão com Mani).

ARNÓBIO DE SICCA (C. 253-327)

Aquele que convida a todos não liberta igualmente a todos? Ou não empurra ele de volta ou repele qualquer um para longe da amabilidade do Supremo que dá a todos igualmente o poder de vir a ele? — A todos, ele diz, a fonte da vida está aberta, e ninguém é impedido ou retido de beber [...] (Contra os pagãos).

Mais ainda, meu oponente diz que, se Deus é poderoso, misericordioso, desejando salvar-nos, que mude as nossas disposições e nos force a confiar em suas promessas. Isso, então, é violência, não é amabilidade nem generosidade do Deus supremo, mas uma luta vã e pueril na busca da obtenção do domínio. Pois o que seria tão injusto como forçar homens que são relutantes e indignos, reverter suas inclinações; imprimir forçadamente em suas mentes o que eles não estão desejando receber, e têm horror de... (ibidem).

CIRILO DE JERUSALÉM (C. 312-386)

Saiba também que você tem uma alma autogovernada, a mais nobre obra de Deus, feita à imagem do Criador, imortal por causa de Deus que lhe dá imortalidade, um ser vivente racional, imperecível, por causa dele que concedeu esses dons: tendo livre poder para fazer o que deseja (Lecture, IV).

Não há um tipo de alma pecando por natureza e outro de alma praticando justiça por natureza; ambas agem por escolha, a substância da alma sendo de uma espécie somente e igualmente em tudo (ibidem).

A alma é autogovernada: e embora o Demônio possa sugerir, ele não tem o poder de obrigar a vontade. Ele lhe pinta o pensamento da fornicação: mas você pode rejeitá-lo, se quiser. Pois se você fosse fornicador por necessidade, por que razão Deus preparou o inferno? Se você fosse praticante da justiça por natureza, e não pela vontade, por que preparou Deus coroas de glória inefável? A ovelha é afável, mas ela nunca foi coroada por sua afabilidade; visto que sua qualidade de ser afável lhe pertence por natureza, não por escolha (ibidem).

GREGÓRIO DE NISSA (C. 335-395)

Sendo à imagem e semelhança [...] do Poder que governa todas as coisas, o ser humano manteve também na questão do livre-arbítrio esta semelhança a ele cuja vontade domina tudo (Sobre a virgindade, cap. XII).

JERÔNIMO (C. 347-4.20)

E em vão que você tem uma idéia falsa a meu respeito e tenta convencer o ignorante de que eu condeno o livre-arbítrio. Deixe aquele que o condena ser ele próprio condenado. Fomos criados, capacitados com o livre-arbítrio; ainda não é isto que nos distingue dos bárbaros. Pois o livre-arbítrio humano, como eu disse, depende da ajuda de Deus e necessita de sua ajuda momento a momento, algo que você e os seus não escolhem admitir. Sua posição é a de que, uma vez que o ser humano tem livre-arbítrio, ele não mais necessita da ajuda de Deus. É verdade que a liberdade da vontade traz consigo a liberdade da decisão. Ainda assim o ser humano não age imediatamente sobre o seu livre-arbítrio, mas requer a ajuda de Deus que, em si mesmo, não precisa de ajuda (Cartas).

Quando nós estamos preocupados com a graça e a misericórdia, o livre-arbítrio é em parte anulado; em parte, eu digo, porque tanto depende dele, que queremos e desejamos, e damos consentimento ao curso que escolhemos. Mas depende de Deus se temos o poder em sua força e com sua ajuda para fazer o que desejamos, e para nosso trabalho e esforço darem resultado (Contra os pelagianos, Livro III).

Cabe a nós o começar, mas a Deus terminar (ibidem, 3.1, v. tb. ap. 11).

JOÃO CRISÓSTOMO (347-407)

Deus, tendo colocado o bem e o mal em nosso poder, nos deu plena liberdade de escolha; ele não retém o indeciso, mas abraça o que é disposto (Homilias sobre Gênesis, 19.1).

Tudo está sob o poder de Deus, mas de um modo que nosso livre-arbítrio não é perdido. [...] Ele depende, entretanto, de nós e dele. Deve­mos primeiro escolher o bem, e, então, ele acrescenta o que lhe pertence. Ele não precede nosso querer, aquilo que nosso livre-arbítrio não suporta. Mas quando nós escolhemos, então ele nos proporciona muita ajuda. [...] Cabe a nós escolher de antemão e querer, mas cabe a Deus aperfeiçoar e concretizar (Homilia sobre Hebreus).[3]

AGOSTINHO JOVEM (354-430)[4]

O livre-arbítrio, naturalmente concedido pelo Criador à nossa alma racional, é um poder tão neutro que pode tanto se inclinar para a fé como se voltar para a incredulidade (O Espírito e a letra).

De fato, o pecado é tanto um mal voluntário que não é pecado de forma alguma, a menos que seja voluntário (Sobre a religião verdadeira).

Logo, ou a vontade é a causa primeira do pecado, e nenhum pecado será causa primeira do pecado (O livre-arbítrio, 3.49).

O pecado não está de fato em nenhum lugar senão na vontade, visto que esta consideração também teria me ajudado, que a justiça declara culpados os que pecam pela vontade má apenas, embora possam ter sido incapazes de fazer o que desejavam (Duas almas, Contra os maniqueus, 10.12).

Nós, convencidos da existência de um Deus supremo e verdadeiro, confessamos também que possui potestade, vontade e presciência soberanas. E não tememos, por isso, fazer sem vontade o que voluntariamente fazemos, porque de antemão sabe Ele, cuja presciência não pode enganar-se, o que temos de fazer (A cidade de Deus, 5.9).

Quem quer que seja que tenha feito qualquer coisa má por meio de alguém inconsciente ou incapaz de resistir, este último não pode por meio algum ser condenado justamente (Duas almas, Contra os maniqueus, 10.12).

Qualquer um que também faz uma coisa com relutância é compelido, e todo aquele que é compelido, se faz uma coisa, faz somente de má vontade. Segue que aquele que deseja é livre de compulsão, mesmo se acha que está sendo obrigado (Duas almas, Contra os maniqueus, 10.14).

De maneira alguma nos vemos constrangidos, admitida a presciência de Deus, a suprimir o arbítrio da vontade ou, admitido o arbítrio da vontade, a negar em Deus a presciência do futuro, o que é verdadeira impiedade. Abraçamos, isso sim, ambas as verdades, confessamo-las de coração fiel e sincero. [...] Longe de nós negar a presciência, por querermos ser livres, visto como com seu auxílio somos e seremos livres (A cidade de Deus, 5.10).

ANSELMO (1033-1109)

Ninguém abandona a retidão exceto por desejar abandoná-la. Se “contra a própria vontade” significa “com relutância”, então ninguém abandona a retidão contra a sua vontade. [...] Mas uma pessoa não pode querer contra a sua vontade porque não pode querer estando indisposta para querer. Cada um que quer, o faz desejosamente (Verdade, liberdade e mal).

Embora eles [Adão e Eva] tenham cedido ao pecado, não podiam abolir em si mesmos a liberdade natural de escolha. Contudo, podiam afetar o seu estado a ponto de não serem capazes de usar aquela liberdade exceto por uma graça diferente daquela que eles tinham antes de sua queda (ibid).

E não devemos dizer que eles [Adão e Eva] tinham liberdade com o propósito de receber de um doador a retidão que eles não tinham, porque nós temos de crer que eles foram criados com vontade reta — embora não devemos negar que eles tinham liberdade para receber essa mesma retidão novamente, se eles a tivessem abandonado de uma vez e ela retornasse para eles por alguém que originalmente lhes deu. Freqüentemente vemos uma evidência disso em pessoas que são trazidas de volta à justiça da injustiça, por graça celestial (ibid).

Você não vê que se segue dessas considerações que nenhuma tentação pode vencer uma vontade reta,? Pois, se a tentação pode vencer a vontade, ela tem o poder de vencê-la, e vence a vontade pelo próprio poder. Mas a tentação não pode fazer isso porque a vontade pode ser vencida somente pelo próprio poder (ibidem).

Agora, eu me pergunto se o próprio Deus poderia remover a retidão da vontade de uma pessoa. Será que poderia? Eu lhe mostrarei que ele não pode. Pois, embora ele possa reduzir tudo o que ele fez do nada de volta para o nada, ele não tem o poder de separar a retidão de uma vontade que a possui (ibidem).

TOMÁS DE AQUINO (1224-1274)

A causa de um pecado é que a vontade não segue a regra da razão nem a lei divina. O mal não surge antes que a vontade se aplique a fazer alguma coisa (Theological Texts, p. 132).

A necessidade vem do agente quando coage alguém do que não pode fazer o contrário. Referimo-nos a isso como “necessidade por coerção”. A necessidade por coerção é contrária à vontade, pois consideramos violento o que quer que seja contrário à inclinação de uma coisa. Mas o próprio movimento da vontade é uma inclinação para algo, de forma que esse algo seja voluntário quando segue a inclinação da natureza. Exatamente como esse algo não pode ser possivelmente violento e natural simultaneamente, assim esse algo não pode ser abso­lutamente coagido ou forçado e simultaneamente voluntário (An Aquinas Reader, p. 291-2).

Assim, por necessidade o ser humano deseja a alegria, e lhe é impossível querer não ser feliz ou ser infeliz. Mas, visto que a escolha não trata com o fim, mas com os meios para o fim, como foi discutido previamente (Suma teológica, I-II, p. 13, 3), ela não trata com o bem perfeito ou com a alegria, mas com outros bens particulares. Conseqüentemente, o ser humano não escolhe necessariamente, mas livremente (ibidem, p. 293).

Alguns têm proposto que a vontade do ser humano é movida necessariamente a fazer alguma escolha, embora não afirmem que a vontade seja coagida. Pois nem toda necessidade de um princípio externo (movimento de violência) é de coação, mas somente aquela que se origina de fora, onde os movimentos naturais certos são descobertos como necessários, mas não como coercitivos. Pois o coercitivo é oposto ao natural, assim como é também oposto ao movimento voluntário, porque esse último vem de um princípio interno, enquanto o movimento violento vem de um princípio externo. Essa opinião [dos averroístas latinos] é, portanto, herética porque destrói o mérito e o demérito das ações humanas. Pois, por que deveria haver qualquer mérito ou demérito por ações que uma pessoa não pode evitar praticar? Além do mais, isso significa ser incluído entre as opiniões excluídas dos filósofos: pois se não há qualquer liberdade em nós exceto que somos movidos da necessidade de querer, então a escolha deliberada, o encorajamento, o preceito, a punição, o louvor e culpa são removidos, e esses são os verdadeiros problemas que a filosofia moral leva em conta. Não somente isso é contrário à fé como também corrói todos os princípios da filosofia moral (ibidem, p. 294-5).

Ora, o pecado não pode destruir totalmente a racionalidade do ser humano, pois então ele não mais seria capaz de pecar (Philosophical Texts, p. 179).

Ser livre não é ser obrigado a um objetivo determinado (ibid., p. 259).

O ser humano possui livre-arbítrio, de outra forma, os conselhos, exortações, preceitos, proibições, recompensas e punições seriam todos sem propósito... (ibidem, p. 261-2).

O ser humano, entretanto, pode agir com juízo e adaptação na razão, um juízo livre que deixa intacto o poder de ser capaz de decidir deforma contrária (ibidem).

De modo semelhante, então, o pecado é causado pelo livre-arbítrio que se afasta de Deus. Em consequência, não se segue que Deus seja a causa do pecado, embora ele seja a causa do livre-arbítrio (Sobre o mal, p. 106).

Deve ser observado que o movimento do primeiro motor não é uniformemente recebido em todas as coisas movíveis, mas em cada uma de acordo com o próprio modo. [...] Pois, quando uma coisa está devidamente disposta a receber o movimento do primeiro motor, segue uma ação perfeita de acordo com a intenção do primeiro motor; mas, se uma coisa não está corretamente disposta e adequada para receber o movimento do primeiro motor, segue uma ação imperfeita. Então, toda ação é atribuída ao primeiro motor, mas todo defeito não é atribuído ao primeiro motor, visto que um defeito na ação resulta do fato de que o agente parte da ordem do primeiro motor. [...] Por essa razão, afirmamos que a ação relativa ao pecado vem de Deus, mas o pecado não vem de Deus (ibidem, p. 110).

Contudo, a deformação do pecado de modo algum está sob a vontade divina, mas resulta do fato de que a vontade livre se afasta ou desvia da ordem da vontade divina (ibidem, p. 111).

Aquino acrescenta:

Semelhantemente, quando alguma coisa move a si mesma, não se pode excluir que ela seja movida por outra coisa de quem ela tem esta própria capacidade de mover a si mesma. Portanto, não é contrário à liberdade dizer que Deus é a causa do ato da vontade livre (ibidem).[5]

O pecado feriu o ser humano em seus poderes naturais no que diz respeito à sua capacidade para o bem gratuito, mas não de tal forma que retira algo da essência de sua natureza; e, assim, não se segue que o intelecto dos demônios errou exceto a respeito de assuntos gratuitos (ibidem, p. 496).



Referência:

GEISLER, Norman. Eleitos, mas Livres:  uma perspectiva equilibrada entre a eleição divina e o livre-arbítrio. Trad. Heber Carlos de Campos. ed. 2. São Paulo: Editora Vida, 2005. p. 170-81.



[1] Se não houver outra indicação, as citações até Agostinho (com exceção de O livre-arbítrio e A cidade de Deus) seguem Roger T. Forster e V. Paul Marston, em God’s Strategy in Human History (p. 245s), e o grifo é do autor em todas as citações.
[2] Trad. Lourenço Costa, São Paulo, Paulus, 1995 (Patrística). A Paulus não manteve em português o título Contra as heresias, como são conhecidos os cinco livros de Irineu de Lião, optando tão-somente pelo nome do autor.
[3] João Calvino conscientemente opõe-se a Crisóstomo e praticamente a todos os pais da Igreja quando diz: “Devemos, portanto, repudiar o sentimento freqüentemente repetido por Crisóstomo: ‘A quem ele atrai, ele atrai voluntariamente’, insinuando que o Senhor somente estica a sua mão, e espera para ver se nos agradamos em receber a sua ajuda. Admitimos que, como o ser humano foi originalmente constituído, poderia se inclinar para qualquer lado, mas, visto que ele nos ensinou pelo seu exemplo que coisa miserável é o livre-arbítrio se Deus não opera em nós o querer e o realizar, de que nos adiantaria se a graça fosse dada em tal exígua medida?” (Institutas da religião cristã, 1.2.3.10).
[4] Esses textos foram retirados dos escritos mais antigos de Agostinho, antes de sua posição ter mudado depois da controvérsia com os cismáticos donatistas (v. ap. 3), os quais Agostinho cria que podiam ser coagidos a aceitar a verdade da Igreja.
[5] Com isso, ele aparentemente quer dizer que Deus é a Causa Primeira, que produziu o fato da vontade livre, enquanto o ser humano é a causa secundária, que realiza (pelo poder que Deus lhe dá) os atos da livre-escolha.

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