Não seria
acurado afirmar que Armínio diretamente negou a doutrina da perseverança dos
santos; como foi o caso com outras doutrinas reformadas controversas, sua
afirmação se fundamentou numa definição particular qualificada. Em sua Declaratio
sententiae, Armínio declarou seus sentimentos a respeito da perseverança
dos santos: “... que as pessoas que foram enxertadas em Cristo, pela fé
verdadeira, e assim têm se tornado participantes de seu precioso Espírito
vivificador, dispõem de poderes suficientes [ou] forças (cracht)
para lutar (strijden) contra Satanás, contra o pecado, contra o mundo e
a sua própria carne e para obter a vitória sobre esses inimigos, mas não sem a
ajuda da graça do mesmo Espírito Santo.”[84]
Estes verdadeiros crentes têm, portanto, implorado o socorro de Deus. Cristo os
preserva de cair, até o ponto em que Satanás não conseguir de forma alguma
tirá-los das mãos de Cristo.[85] Por
cima, a definição de Armínio a respeito da perseverança não é
significativamente diferente da de Gomarus, que define perseverança dos santos
assim: “Ela é a persistência dos verdadeiros fiéis na fé, até o fim da vida, a
partir da graça de Deus, por causa do mérito de Cristo, com a virtude do
Espírito Santo através do ministério do evangelho, para a glória de Deus e
salvação dos santos perseverantes.”[86] Tal
como esta definição está, é difícil imaginar Armínio achando algum erro nela.[87]
A questão real é se os santos
necessariamente perseveram, ou se é possível a eles se perderem. Quando Armínio
deu atenção explícita ao tópico da perdição dos santos, ele geralmente não se
comprometeu com uma opinião firme. Em sua obra contra Perkins, no início da sua
carreira, Armínio escreveu que ele não ousaria dizer prontamente que a
verdadeira e salvífica fé, totalmente ou finalmente, se perde.[88] Até
mesmo no fim da sua carreira, ele pareceu permanecer indeciso sobre esta
questão.[89]
De fato, os relatos da conferência final em Haia dois meses antes da sua morte
mostram que Armínio nunca se opôs a doutrina no que diz respeito a certa
perseverança dos verdadeiros fiéis (vere fidelium).[90]
Ao mesmo tempo, facilmente se pode ver as inclinações de Armínio sobre este
tópico. Não só ele é rápido em apontar que em nenhum momento na história da
igreja algum ponto de vista particular sobre esta questão havia sido
considerada como uma doutrina necessária, mas ele também afirma que a maior
parte da tradição cristã, especialmente os pais, diria que é possível aos
crentes se perder e perecer.[91] Ademais,
quando Perkins defendeu que é impossível a verdadeira fé falhar, Armínio avida
e habilmente argumentou contra essa visão.[92]
Por causa da aparente vacilação de
Armínio sobre a possibilidade de apostasia e por causa das inferências feitas a
partir de seus mais claros ensinos, este assunto se tornou em outra área de
conflito. Ele foi debatido em Leiden especialmente por causa dos claros ensinos
de seus colegas contra a possibilidade de apostasia. De acordo com Gomarus e
Kuchlinus, o enlace com Deus e a união do fiel com Cristo e a Igreja são
perpétuas.[93]
Gomarus aponta que os santos são os eleitos que possuem fé verdadeira, e não o
réprobo que pode ter fé temporária.[94]
Kuchlinus é particularmente inflexível que os santos nem sequer podem toti,
totaliter, ou finaliter abandonar sua fé.[95] O
dom da regeneração é ἀμεταμέλητα (irrevogável), “portanto, uma vez dado, o
Espírito Santo sempre permanece.”[96]
Armínio pode parecer, a princípio,
incerto quanto a possibilidade de apostasia, mas após uma maior investigação o
seu ponto de vista é realmente bastante direto. Dois pontos de distinção são
essenciais para entender a posição de Armínio. Primeiro, Armínio distingue
entre a possibilidade e a realidade dos fiéis se perderem. “Eu digo que deve
ser feita distinção entre possibilidade e realidade (potentiam et actum).
Pois uma coisa é os fiéis serem capazes (posse) de declinar da fé e da
salvação: outra coisa é realmente caírem.”[97]
Por mais estranha que esta distinção possa parecer ao intérprete moderno, esta
distinção foi importante na teologia tradicional, como evidenciado pelo apelo
de Agostinho (e Armínio) a mesma distinção na questão da perfeição cristã.
Armínio prosseguiu dizendo,
Pois ser
realmente salvo e a possibilidade de não ser salvo, não são coisas contrárias,
mas concordam. Portanto, acrescento que sempre tenho distinguido entre estas duas
coisas, de modo que realmente disse algumas vezes com explicação acrescida, que
os fiéis são capazes de finalmente declinar da fé e da salvação; mas nunca
disse que os fiéis finalmente declinam da fé e da salvação.[98]
A afirmação clara de Armínio de que
ele realmente ensinou que é possível aos crentes perderem a fé e a
salvação à primeira vista parece contradizer a declaração igualmente clara na Declaratio
sententiae de que ele nunca ensinou esta possibilidade. O texto traduzido
por Nichols diz: “Eu nunca ensinei que um verdadeiro crente pode totalmente
ou finalmente perder a fé e perecer.”[99] Contudo,
após uma investigação mais detalhada dos textos originais, esta contradição
aparente é resolvida, pois não há equivalente ao inglês “can” [poder] no
holandês ou no latim. Esta falta de connen ou posse mostra que
Armínio foi consistente em seu ensino sobre esta questão, e que na Declaratio
ele estava falando da realidade, e não da possibilidade de apostasia. A frase
deve ser lida: “Eu declaro inequivocamente que jamais ensinei que o verdadeiro
crente se afasta (afwijcken), quer totalmente ou finalmente, da fé e
assim se perde.”[100]
Portanto, Armínio afirma a possibilidade de apostasia; se realmente isto
acontece ele parece deixar aberto para discussão.
A
segunda distinção significativa que Armínio faz é entre uma pessoa eleita e um
crente. Ele observa que a eleição para salvação não denota apenas crença, mas
também perseverança nessa fé. Portanto, uma pessoa eleita deve tanto crer quanto
perseverar. “Crentes e os eleitos não são corretamente tomados como as mesmas
pessoas.”[101]
Para Armínio, há certamente a categoria de verdadeiros crentes que não
perseveram. Por este raciocínio, os eleitos por definição não podem se perder,
pois eles creem e perseveram. Os crentes simpliciter podem se perder caso
não perseverem, demonstrando assim não serem eleitos. Além disso, este
julgamento concorda com a distinção que Armínio faz entre os fiéis que caem da
fé, e os fiéis que caem da salvação. De acordo com Armínio, é incoerente
simplesmente afirmar que os fiéis podem perder a salvação. É mais apropriado
dizer que os fiéis podem cair da fé; depois, como incrédulos, eles não teriam
salvação. Enquanto os crentes perseverarem, eles têm salvação. “Pois é
impossível aos fiéis, enquanto permanecem fiéis, declinar da salvação.[102]
Recordar
a comparação do mendigo de Armínio, porque a fé é um dom resistível – porque um
mendigo poderia presumivelmente rejeitar a esmola que lhe foi dada – a
verdadeira fé não é necessariamente apenas para os eleitos. Provavelmente por
causa da visão diferente de Gomarus da irresistibilidade da graça e da fé que
ele se opôs a distinção teórica de Armínio (propriamente dos jesuítas) entre um
crente verdadeiro e uma pessoa eleita. Ao concluir o seu debate sobre a
perseverança, Gomarus insistiu, “Também os jesuítas maldosamente estabelecem
duas espécies de verdadeiros fiéis e justificados, a saber, os eleitos que
perseveram e os não-eleitos que declinam.”[103]
O que aparece no sistema de Armínio é um tipo de fé temporária que, a despeito
da objeção de Gomarus, não é muito diferente da categoria reformada de fé
temporária. A semelhança prática entre os dois sistemas é que ambos
concordariam que uma pessoa visivelmente fiel que aparentemente caiu até o fim
demonstrou não ser um dos eleitos.[104]
Uma dificuldade semelhante tanto para Armínio quanto para os seus
contemporâneos reformados é que uma pessoa não pode dizer atualmente se ela ou
qualquer outra pessoa verdadeiramente perseverará na fé ou na incredulidade.
Fonte: STANGLIN, Keith
D. Arminius on the Assurance of Salvation. Leiden: BRILL, 2007. p.
130-134
[84] Dec. sent.,
p. 114; Works 1:664; Obras 1:232
[85] Dec. sent.,
p. 114-15; Works 1:664-65; Obras 1:232-33
[86] Gomarus,
Theologicarum disputationum decimaoctava: de sanctorum perseverantia,
Henricus Arnoldus respondens, 5 de Março de 1597 (Leiden, 1597), i: “Ea autem
est vere fidelium in fide, ad finem usque vitae, ex Dei gratia, propter Christi
meritum, virtute S. Sancti per ministerium Evangelii, perduratio, ad gloriam
Dei et perseverantium sanctorum salutem.” Cf. a definição em idem, De
perseverantia (1608), ii: “Perseverantia Sanctorum est, qua, qui vinculo
non solùm aternae [sic] electionis, sed etiam Spiritus Christi, veraeque fidei
Christo copulati, in perpetuum in ipso Christo et in fide perseveraturi sunt,
ita ut a fide prorsus excidere non possint: idque non propter proprias vires,
aut merita, sed tum propter promissionem, et conservationem divinam, tum
propter Christi intercessionem et precationem.”
[87] Letham,
‘Faith,’ 1:314, exagera a questão quando afirma que, “Armínio não tinha
qualquer doutrina da perseverança.”
[89] Veja Dec.
sent., p. 115; Works 1:667; Obras 1:233. O quinto artigo da
Remonstrância de 1610 é igualmente indecisa sobre esta questão porque, como o
quarto artigo, ele é tomado quase que literalmente da Declaratio sententiae
de Armínio. Sobre a relação entre a Declaratio de Armínio e a
Remonstrância de 1610, veja Hoenderdaal, ‘Inleiding,’ pp. 36.41.
[90] Acta Synodi,
fol. (d)1v; veja também a carta de Hommius para Lubbertus em Wijminga, Hommius,
Bijlage G, p. xiv.
[91] Art. non.,
em Opera, p. 962; Works 2:725; idem, Exam. Perk., em Opera,
pp. 757-58; Works 3:454-55.
[92] Exam. Perk.,
em Opera, pp. 757-66; Works 3:454-70.
[93] Gomarus, De
perseverantia (1597), ix e xi; idem, De fide iustificante (1603),
xvii; Kuchlinus, De perseverantia (1603), v e vii.
[94] Gomarus, De
perseverantia (1608), vi.
[95] Kuchlinus, De
perseverantia (1603), i.
[96] Kuchlinus, De
perseverantia (1603), viii: “ergo semel datus Spiritus Sanctus semper
manet.” Cf. Trelcatius, Sr., De fide (1592), xi, que chama a fé de dom ἀμεταμέλητα.
[97] Apologia,
art. 1-2, em Opera, p. 136; Works 1:741; Obras 1:257.
[98] Apologia,
art. 1-2, em Opera, p. 136; Works 1:741; Obras 1:257-58,
itálicos meus: “Salvari enim actu et posse non salvari contraria non sunt, sed
consentanea. Addo igitur me inter ista duo huc usque ita discriminasse, ut
addita explicatione aliquando dixerim quidem, fideles posse a fide et
salute finaliter deficere; at nunquam dixisse fideles a fide et salute finaliter
deficere.” Os itálicos na tradução de Nichols para o inglês são confusas, como se a ênfase estivesse sobre
finaliter. A diferença real é a presença e depois a ausência de posse.
[99] Em Works
1:667; Obras 1:233.
[100] Dec. sent.,
p. 115; Opera, p. 123. Aqui reside um ponto de descontinuidade com os
remonstrantes posteriores, os quais, uma década após a morte de Armínio,
afirmaram não apenas a possibilidade, mas também a frequente realidade da
apostasia. Veja Sententiae Remonstrantium no quinto artigo, entregue na
34ª sessão do Sínodo de Dort, em Acta synodi nationalis, in nomine Domini nostri
Iesu Christi... Dordrechti habitae anno M.DC.XVIII. et M.DC.XIX (Hanau,
1620), p. 166 (ênfase minha): “Vere fideles possunt a vera fide excidere, et in
istiusmodi prolabi peccata, quae cum vera et iustificante fide consistere non
possunt: nec potest hoc tantum fieri; sed et non raro fit.” As Sententiae
Remonstrantium estão traduzidas em Crisis in the Reformed Churches:
Essays in Commemoration of the Great Synod of Dort, 1618–1619, ed. Peter Y.
De Jong (Grand Rapids, 1968), pp. 221-29. Cf. Hoenderdaal, ‘Arminius en
Episcopius,’ 216; Graafland, Van Calvijn tot Barth: Oorsprong en
ontwikkeling van de leer der verkiezing in het Gereformeerd Protestantisme
(The Hague, 1987), p. 175.
[101] Arminius, Quaestiones,
resp. 8, em Opera, p. 186; Works 2:68; Obras 1:350.
[102] Apologia,
art. 1-2, em Opera, p. 136; Works 1:741-42; Obras 1:258:
“Nam impossibile est fideles, dum fideles manent a salute deficere.”
[103] Gomarus, De
perseverantia (1597), cor. ii: “Male etiam Iesuitae vere fidelium ac
iustificatorum duas constituunt species, videlicet electos, qui perseverant: et
non electos, qui deficiunt.”
Comentários
Postar um comentário